quinta-feira, 29 de março de 2018

A Equipe


A Equipe

Péricles Capanema

Nos já distantes começos dos anos 70 alguém intitulou ▬ não me lembro quem ▬ de A Equipe a um conjunto de grandes atores da cena internacional. Nixon, Kissinger, Brejnev, Willy Brandt, Pompidou, outros ainda, pareciam agir em uníssono na condução da distensão (ou détente). Cada um deles, encarapitado em sua posição ideológica, em sintonia surpreendente promovia a política cujo maior figura simbólica foi Henry Kissinger, aqui e ali ainda lembrado hoje, com exagero, como uma espécie de Metternich desse período. Anos e anos a fio. A China estava fora da dança, ainda ensaiava os primeiros passos de uma escalada que hoje a coloca como maior opositora dos Estados Unidos. Aliás, a détente criou e favoreceu condições para a ascensão chinesa.

Por que lembro tais fatos? Simples. Acompanhando os recentes acontecimentos de Brasília, a pontiaguda qualificação ▬ A Equipe ▬ me obcecava a memória entristecida. Advogados celebrados, magistrados nos galarins da imprensa, jornalistas acólitos, políticos na sombra, quem sabe grandes empreiteiros encalacrados, quais outros partícipes?, em sintonia surpreendente, conduziram os fatos para desfecho combinado, a liminar antes impensada até mesmo por todos os que diuturnamente nos órgãos de divulgação previam qual seria o desenlace da votação do HC, cuja aprovação livraria Lula da cana. Um de tais analistas observou, escrevia sobre o inesperado desfecho provisório do caso (ainda vem coisa por aí), o Brasil não é para principiantes; e nem para experientes. Nem os mais experientes conseguem conjeturar a fundo sobre as tramoias do jeitinho brasileiro (na ocorrência, mal-empregado).

Deixemos de lado os jeitinhos, a coisa é séria. Potencialmente, de apocalípticas consequências. Em substância, não vi verberação dos fatos mais grave que a do senador paranaense Álvaro Dias, de momento também presidenciável, o que confere a suas palavras alcance maior: “O voto suspeito de seis ministros do Supremo provocou grande indignação no país. Afinal, o ex-presidente da República está acima das leis e o Supremo é uma instituição dedicada a protegê-lo evitando sua prisão? Quando uma instituição essencial ao Estado de Direito se divorcia das aspirações da sociedade, a República falece. A República faleceu. Nós vamos continuar defendendo a refundação da República.”

Tomem nota: nas palavras de um dos mais destacados senadores, o Brasil oficial é um cadáver. Sinônimo exato para faleceu, no caso é, a República foi assassinada. Se foi assassinada, existem assassinos. Mais concretamente, de forma metafórica, o Brasil assistiu ao assassinato das instituições do Estado. Aqui, empurrado de forma incoercível por lógica comezinha digo eu, assassinato perpetrado por A Equipe.

Um cambalacho levou a um assassinato nas palavras do senador. Ou o parlamentar paranaense é irresponsável, ou está afirmando que a República faleceu por ter sido assassinada em suas instituições em especial por membros do Supremo. Quem assassina (destrói) instituições basilares do Estado é incompatível com as funções que tão indignamente exerce. Deve sofre, por crime de responsabilidade, processo de impeachment, legalmente conduzido pelo Senado. Claro, embora conjeturável, nada disso acontecerá. Por quê? Inexistem condições políticas para tais providências. Membros de A Equipe o impedirão. De outro modo, o País encontra-se manietado por um contubérnio. E as vítimas indefesas do contubérnio assassino não foram apenas as instituições, a punhalada varou em especial o coração da parte mais sadia do Brasil, aquela particularmente ligada a seu passado cristão.

Em artigo de umas três semanas atrás eu dizia, soa agora quase como vaticínio: “O Brasil parece estar de braço quebrado. Sua ‘maior et sanior pars’, a gente que presta, o pessoal mais ativo e decisivo, sente que, mesmo com os atuais recursos, eliminados obstáculos artificiais, muita coisa boa pode ser feita já. [...] A ‘sana pars’ do Brasil vê com clareza, pode planejar a saída, mas as instituições a bem dizer tornam inviáveis quaisquer movimentos nesse sentido. É uma espécie de imobilidade forçada que não leva à cura.”

Constatava a execração, mas também, causada por instituições que acorrentam a nação, a imobilidade forçada diante do catástrofe. Ia adiante: “No Brasil dos anos 60 a ‘maior et sanior pars’ presenciou desgostada a irrupção nas praças e ruas do padre de passeata e da freira de minissaia, como os ferreteou Nelson Rodrigues. Hoje fazem companhia a eles o juiz de passeata e os procuradores de passeata, horrores impensáveis naqueles já distantes anos, em que a gravidade, a discrição funcional e o senso do bem comum dos magistrados parecia valor adquirido na sociedade brasileira. A espetacularização achincalhante do Judiciário avança despudorada sob o olhar asqueado da ‘sana pars’ do Brasil. São trincas em uma das colunas institucionais do Brasil. O que fazer? De certa maneira, aqui também, de forma temporária, estamos condenados à imobilidade”.

Condenados à imobilidade, outra vez, ferrolhos institucionais. Eu dizia, a coluna está trincada. Álvaro Dias, agredido pela realidade, foi mais longe, a coluna desmoronou em nossas cabeças. O que fazer, dentro do ordenamento que nos agrilhoa, contra a degenerescência nos três Poderes e em numerosas elites (ou oligarquias) da sociedade civil? Aqui está o ponto.

Atribui-se a Konrad Adenauer, o lendário chanceler do pós-guerra alemão, não sei se com fundamento, princípio político verdadeiro: o primeiro dever de todo chefe político é cobrir a própria área. Em outros termos, falar para ela, articulá-la, vivificá-la. No caso, tudo fazer para os que agora inconformados não se acomodem, mas se solidifiquem em suas posições. A expansão da inconformidade entre os de momento passivos e hesitantes, providência essencial, fica para segundo momento lógico.

A reconfiguração do panorama é urgente, a opinião pública ultrapassou um meridiano nos últimos dias. Com efeito, o Brasil inconformado com a deterioração verificou traumatizado que nossas instituições, mesmo as mais prestigiadas, estão podres, cheiram mal. Álvaro Dias chegou a dizer que membros seus assassinaram a República.

E aí, fomos jogados diante do pavoroso. Posta a decomposição geral do Brasil oficial, estando carcomidas as amarras da lei, a porta ficou aberta para destruições em proporção agora incalculável do que resta de progresso, esperança e dignidade em nosso futuro. Serão passos largos na mesma estrada rumo ao precipício, já trilhada pela Venezuela.

Para tal, poderemos assistir o espetáculo repetitivo de magistrados graves, à vera contrafações burlescas de Nelson Hungria e de tantos outros, no meio de vazia e aparatosa erudição, esbofeteando despudoradamente disposições da legislação brasileira, para a adaptar aos intuitos inconfessáveis de membros decisivos de A Equipe. Entre elas, vão aqui apenas como ilustração, as constantes do artigo 8º do novo Código de Processo Civil: “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. Onde nos últimos dias se escondeu a preocupação com o bem comum? Com a dignidade? A obediência à razoabilidade?

Diante da aparente inutilidade de reagir, a tentação dos inconformados será a acomodação diante da inflexibilidade dos que conduzem a farândola demolidora. Quando não a adesão a soluções amalucadas. O caminho é outro: fugir do desânimo, lucidez e persistência na esperança, mesmo dentro da tragédia. Deus não abandonará um País fruto de tantas lágrimas. Como santo Agostinho, resgatado do descaminho pelo sofrimento e oração de santa Mônica, um dia brilhará para o Brasil aurora de enorme grandeza cristã.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Raios dourados no crepúsculo fuliginoso


Raios douradas no crepúsculo fuliginoso

Péricles Capanema

Tenho sido severo ▬ suponho, com justiça ▬ com aspectos da vida nacional. Severidade pode ser sinônimo de objetividade para quem procura observar com realismo. Recebo estímulos; aqui e ali, censuras. Não importa, é quinhão inevitável. Qualquer um que, mesmo que modesta e de forma efêmera, pise o âmbito público, está sujeito a boas críticas e a injustiças. Moral da história, tocar a vida sem se preocupar com elas.

Neste texto vou virar a quilha de meu navio e navegar em rumo diverso. A palavra ufanismo com conotação de orgulho exagerado por determinada coisa tem sido associada ao conde Afonso Celso (1860-1939). Pouca gente hoje sabe, Afonso Celso, conde pontifício, foi filho do visconde de Ouro Preto, último presidente do Conselho de Ministros da monarquia brasileira. Professor, historiador, escritor, deputado geral no Império, é dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, por ele presidida por duas vezes.

Entre suas obras figura o opúsculo “Por que me ufano de meu País”, publicado em 1900, redigido, singelo o confessa, para que seus filhos amassem o Brasil. É trabalho ingênuo, prova pouco e mal o que deseja demonstrar. Mas tem frescor, a bem dizer inexistente no convulsionado Brasil de nossos dias. Todos sabemos, o frescor é das mais belas manifestações da vida, em especial das coisas que nascem. O país conservava traços da infância; apresenta hoje, sob tantos pontos de vista ▬ sejamos objetivos ▬ catadura de maturidade depravada.

Vejam o que ele diz dos homens públicos do Brasil de então (era ainda a geração do Império), um dos motivos enumerados pelo escritor para esperar na grandeza da Pátria: “Honradez no desempenho de funções públicas ou particulares. A estatística dos crimes depõe muito em favor dos nossos costumes. Viaja-se pelo sertão, sem armas, com plena segurança, topando sempre gente simples, honesta, serviçal. Os homens de Estado costumam deixar o poder mais pobres do que nele entram. Magistrados subalternos, insuficientemente remunerados, sustentam terríveis lutas obscuras, em prol da justiça, contra potentados locais. Casos de venalidade enumeram-se raríssimos, geralmente profligados. A República apoderou-se de surpresa dos arquivos do Império: nada encontrou, que o pudesse desabonar. Por ocasião dessa revolução, senadores ficaram tão pobres que o novo regime lhes ofereceu pensões. Ao Imperador que governara 50 anos, assegurou a Constituição Republicana meios de subsistência de que ele precisava, mas que não aceitou. Quase todos os homens políticos brasileiros legam a miséria às suas famílias. Qual o que já se locupletasse à custa do benefício público?”

Parece que Afonso Celso fala de outro país e outro povo. A honestidade (Afonso Celso diz honradez) era característica comum, presente em nossas elites políticas de então, reflexo de realidade social generalizada. Temos agora sob os olhos a república dos ratos magros, esfomeados, lembrando imagem de Roberto Jefferson. Também outra é a realidade na sociedade.

O viço presente no livro embebe a descrição do quotidiano de são José de Anchieta, inserido ali para nos fazer sentir o sabor do Brasil nascente. Leva-nos a crer que, pelos rogos do padroeiro, Deus se apiedará do Brasil e o recolocará na trilha almejada pelo grande missionário e fundador de nação: “Vem depois José de Anchieta, o taumaturgo, o santo do Brasil. Anchieta vai para Piratininga como mestre-escola. Passa aí misérias sem nome, fome, frio, falta de roupa, morando numa pequena barraca, onde funcionavam as aulas, e que era, a um tempo, enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha, despensa. Ensinava latim e aprendia tupi, de que compôs o vocabulário e a primeira gramática. Trabalhava dia e noite, escrevendo as lições para cada aluno, pois não havia livro. Escrevia hinos, baladas, interrogatórios para confissões, resumos dialogados da fé cristã e autos teatrais que os índios representavam ou viam representar, em palcos por ele improvisados. Exercia funções de médico, barbeiro, fazedor de alpercatas, cujos cordões serviam também de disciplinas. Poeta, elaborou um poema sobre a vida da Virgem Maria, na esperança de manter a própria pureza, fixo o pensamento na mais pura das mulheres. Sem papel, pena e tinta, metrificava os versos, passeando. Traçava-os em seguida na areia e os confiava à memória.”

Por que destaco a cena? Na árvore as raízes sãs valem mais que tronco, galhos, flores e frutos. Delas tudo depende. Aí acima estão as mais lídimas raízes do Brasil, mais enterradas que as analisadas com talento e lentes deformantes por Sérgio Buarque de Holanda. No meio da tormenta, justificam esperanças sobrenaturais de que um dia se tornará realidade o que, com ufania, ainda que em esboço esmaecido, foi confusamente antevisto pelo simpático conde pontifício.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Intolerância mal disfarçada


Intolerância mal disfarçada

Péricles Capanema

Fernando Henrique Cardoso concedeu reveladora entrevista, largamente distribuída, a Fernando Grostein Andrade. Como se sabe, o atual presidente de honra do PSDB, além de elder stateman, é o mais conhecido intelectual público do Brasil. A entrevista tem advertência importante, vem a seguir; traz ainda péssimas posições, mau agouro para o que pode vir para o Brasil. Por itens.

1. A advertência: o tráfico vai financiar e eleger candidatos. Estamos a sete meses da eleição de deputados, senadores, governadores, presidente da República. As campanhas serão caríssimas, mesmo que pouca gente o reconheça. Lembro, ninguém ou quase tanto quis fazer valer o voto facultativo, o que as baratearia de imediato. E o STF proibiu o financiamento empresarial. O dinheiro público será insuficiente, o grosso virá de outras fontes, em geral não registradas, receia-se com razão. Diz o antigo presidente da República: “Olha, quando comecei a mexer com essa questão de política de drogas, minha preocupação era com a democracia. Pouco a pouco, os narcotraficantes foram tendo influência política. Pablo Escobar é o maior exemplo disso. Mas não é só ele e não é só lá. O Brasil ainda não tinha chegado a este ponto, mas está começando. O problema é que os narcotraficantes dominaram certas áreas. E começam a entrar na vida política. Aconteceu na Colômbia. Vai acontecer no Brasil, está acontecendo. O tribunal eleitoral proibiu o uso do dinheiro das empresas., quem é que tem dinheiro? É o narcotraficante, as igrejas [evangélicas] têm, que é do dízimo”.

2. Apoio ao desatino da reforma agrária brasileira e simpatia pelo MST. Na entrevista, FHC satisfeito vira as costas para os ruralistas e aplaude ufano a subversão no campo, certamente prejudicando a candidatura Alckmin e de vários companheiros do PSDB, mas danos eleitorais parecem migalhas, diante da perspectiva de mais uma vez o político tucano se mostrar afinado com a esquerda, mesmo a mais radical: “Reforma agrária no Brasil foi feita por duas pessoas. Duas pessoas, não, dois governos. O do Lula e o meu. Ninguém sabe o quanto de terra foi distribuído. É uma barbaridade. Mas fui eu o Lula quem fizemos. O MST ajudou, porque faz barulho”.

3. Só a briga pelo poder afasta PT e PSDB. FHC vê os tucanos como doutrinariamente próximos ao PT, partido que tem em seus documentos o coletivismo total como meta (coletivismo é outro nome para comunismo): “Por que o PT e o PSDB nunca se juntaram? Por disputa de poder, não por disputa ideológica. Se eu pudesse reviver a História eu tentaria me aproximar não só do Lula, mas de forças políticas que eu achasse progressistas. Eu gosto do Fernando Haddad”. O presidente honorário do PSDB continua indiferente às devastações eleitorais que pode causar em correligionários, escorraçando eleitorado que agora pensa votar no PSDB como barreira ao PT. Esbofeteia alegremente conveniências eleitorais de aliados e bafeja possibilidades de vitória de adversários.

4. FHC prega frente comum com correntes libertárias. Enquanto que, da direita, quer distância, em especial dos conservadores em matéria de costumes, faz frente comum com libertários: “Você tem uma direita em matéria de costumes, conservadora. Eu sou liberal em matéria de costumes, completamente liberal. Acho que a diversidade tem de ser respeitada. O pessoal da direita reacionária não acha isso. Está errado”.

5. Jean Wyllis, coincidimos em geral. Jean Willys (PSol-RJ) é o deputado das causas LGBT, tem posições à esquerda do que publicamente defende a maioria dos deputados do PT. FHC vai até ele: “Eu já defendi o Jean Willys publicamente. Tive um debate com ele e em geral coincidimos. Eu o defendi publicamente, porque acho que ele é corajoso”.

6. Intolerância com conservadores e direitistas. Num sentido, o líder tucano favorece o programa demolidor da esquerda, almeja para ela liberdade total em suas tentativas de implantá-lo. Em rumo oposto, gostaria de cercear o pensamento “não progressista”. Intolerante, advoga na prática, ainda que de forma disfarçada, pelo banimento da cena pública de ideias das quais discorda. Para elas, ostracismo perpétuo, a mordaça inconfessada. Dois exemplos. O BTG tem convidado pessoas públicas de vários quadrantes ideológicos para palestras, debates e entrevistas. Convidou Jair Bolsonaro. FHC não gostou, achou “irresponsável” a atitude do banco: “Pra que convidar alguém que tem esse tipo de pensamento?” Outra vítima da intolerância. O conceituado economista Paulo Guedes apresentou esboço de programa econômico de governo com ênfase nas privatizações. Tem ficado clara sua preocupação social, conjugada com o propósito de sanear as contas do Estado e estimular a produção. Com as privatizações, segundo ele, haveria recursos públicos para, por exemplo, aplicar em saúde e educação, hoje na UTI. FHC, coçando a língua para atacá-lo, escolheu o caminho fácil: “Eu não conheço o Paulo Guedes, mas pelo que leio ele acredita que basta liberalizar que tudo se resolve. Tá na lua, né”? São no mínimo declarações irresponsáveis por induzirem o leitor a ter ideia falsa do que pensa o economista. Não conhece e já sai descendo a madeira?

Não há inimigos à esquerda, foi lema conhecido na Europa, em especial na França. Existe uma misteriosa atração pelo abismo (pelo extremo da própria posição) presente em correntes de centro-esquerda. Existiu em Kerensky. Abriu o caminho para Lenine. Existiu em Eduardo Frei. Abriu o caminho para Allende. Quem pode negar que o período FHC em boa medida preparou os oito anos de Lula? A entrevista revela a mesma misteriosa atração pelo abismo no mais importante líder peessedebista ▬ um exemplo do que existe Brasil afora em grupos dirigentes dos mais variados setores. Inexistindo vacina na opinião pública, a conivência e a subserviência de tanta gente podem ser decisivas para a determinação dos destinos do Brasil pós-eleição.

Pelo menos deixa no ar alerta benéfico. Consequência dela incoercível, vive na lua quem achar que bastaria votar de olhos fechados em candidato tucano para salvar o Brasil do petismo e de outras formas de bolchevismo atualizado.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O Brasil de braço quebrado


O Brasil de braço quebrado

Péricles Capanema

Estou de braço quebrado. Pior, o direito, e sou destro. Já sei, problema meu, ninguém tem nada a ver com isso. Podem ficar tranquilos, não vou falar de mim só por falar, sirvo apenas de exemplo, tratarei mesmo é do Brasil, catando milho nas teclas do computador com a mão esquerda. Eça de Queiroz imaginou a vida de Gonçalo Mendes Ramires como metáfora de Portugal. Modestamente, “proportione servata”, fiapos disso seguem abaixo.

Quieto, não sinto dor; se mexo, dói pra chuchu. Não espanta, a imobilidade deve ser total, advertiu o ortopedista, uns 45 dias na tipoia, por baixo. Obedeço, fazer o quê, mas é difícil. A cabeça continua igual, ainda que um tanto desorientada pelo fechamento brusco do leque das possibilidades. Hoje posso fazer quase nada, um tanto de coisas vai sendo deixada para trás a toda hora, sei lá se e quando as retomarei. Aflijo-me em olhar o abismo entre o que quero e o que posso fazer.

A sensação primeira foi de turbilhão, algo como um beduíno inexperiente envolto por tempestade de areia. Dores, desorientação, desconhecimento do que vem por aí e terei de enfrentar. Até o momento, ignoro se será necessário a cirurgia ou se bastará o repouso para a reconstituição da fratura. Nem sei se o braço terá os movimentos prejudicados. Como será a fisioterapia? Disseram-me, vai ser necessária, nada mais. Na melhor hipótese, daqui a poucas semanas tudo volta ao que era. Tentei escrever, saiu uma garatuja. Perguntei tímido ao médico: ▬ Posso escrever? ▬ Melhor não. ▬ Paro por aqui, ao contrário de Xavier de Maistre não vou relatar viagem em torno do meu braço partido. Rezem por mim.

O Brasil parece estar de braço quebrado. Sua “maior et sanior pars”, a gente que presta, o pessoal mais ativo e decisivo, sente que, mesmo com os atuais recursos, eliminados obstáculos artificiais, muita coisa boa pode ser feita já. É preciso que, anos sem fim, apenas 2,1% dos alunos de famílias pobres tenham aproveitamento escolar decente? Nenhuma nação terá futuro de relevo com tragédia dessas. Em Hong Kong, 53,1% dos filhos de pobres têm bom desempenho na escola; em Macau, 51,7%; em Cingapura, 43,4%; no Japão, 40,4%. Sexagésima segunda nossa posição entre os países, os dados, da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), estão nos jornais dos últimos dias. Nas últimas semanas também fomos informados por órgão ligado ao Banco Mundial que no item Leitura (ciências humanas, digamos), posto o ritmo atual, precisaremos de 260 anos para atingir o nível dos países desenvolvidos. E no item Matemática (ciências exatas, digamos), 75 anos. É como estar de braço quebrado. A “sana pars” do Brasil vê com clareza, pode planejar a saída, mas as instituições a bem dizer tornam inviáveis quaisquer movimentos nesse sentido. É uma espécie de imobilidade forçada que não leva à cura.

No Brasil dos anos 60 a “maior et sanior pars” presenciou desgostada a irrupção nas praças e ruas do padre de passeata e da freira de minissaia, como os ferreteou Nelson Rodrigues. Hoje fazem companhia a eles o juiz de passeata e os procuradores de passeata, horrores impensáveis naqueles já distantes anos, em que a gravidade, a discrição funcional e o senso do bem comum dos magistrados parecia valor adquirido na sociedade brasileira. A espetacularização achincalhante do Judiciário avança despudorada sob o olhar asqueado da “sana pars” do Brasil. São trincas em uma das colunas institucionais do Brasil. O que fazer? De certa maneira, aqui também, de forma temporária, estamos condenados à imobilidade.

A podridão que exala das estatais (deixo de lado no momento os prejuízos amazônicos, a incompetência e o descalabro proverbiais), constatada no mensalão, no petrolão e no eletrolão, na bica, fez com que a privatização avançasse no público. Já não se admite como possível, muito menos como recurso eleitoral, a ridícula figura de Geraldo Alckmin vestindo jaqueta com os logos das estatais, herança melancólica da campanha de 2006. Melhorando, vergonhosa. O atual é Paulo Gudes, o principal assessor econômico de Bolsonaro, declarando o que vai a seguir sem acarretar perda de densidade eleitoral para o candidato: “O governo é muito grande, bebe muito combustível. Mas se você olhar para educação, saúde, ele é pequeno. Já que a democracia vai exigir a descentralização de recursos para Estados e municípios, o governo federal tem que economizar. Onde? Na dívida. Se privatizar tudo, você zera a dívida, tem muito recurso para saúde e educação. Ah, mas eu não quero privatizar tudo. Privatiza metade, então. Já baixa metade da dívida. Tem clima para não privatizar? Onde começou o mensalão, Bradesco ou Correios? Onde se acusa o Eduardo Cunha? Caixa, loterias, fundos de pensão. Onde foi o petrolão? Petrobras. Você vê clima para continuar com as estatais? O povo brasileiro é contra? Ou será que são vocês [imprensa]? Eu nunca escutei isso do povo. Eu escutei isso da Folha, de jornalistas tucanos, petistas. Por que não pode vender o Correio? Por que não pode vender a Petrobras? E se o mundo for para um negócio de energia solar? E o shale gas [gás de xisto]? E se o petróleo, daqui a 30 anos, estiver valendo US$ 8 [o barril]? Você sentou em cima de um totem, ficou adorando o Deus do óleo. Por que uma empresa que assalta o povo brasileiro tem que continuar na mão do Estado”? Aqui a fratura de décadas, parece, começa a consolidar.

Um monte de fraturas ainda precisa consolidar. Já estou no fim. Só dois exemplos. O disparate delirante da reforma agrária. O programa de décadas atira pelo ralo uma dinheirama que não temos, não aumenta a produção, não ajuda os pobres, é foco de corrupção. Todo mundo tem receio de tocar nesse tumor de estimação. Outro tumor, a subserviência e entrega do Brasil em relação à China comunista, colocando a independência nacional em risco. Também já completa décadas. Fraturas e tumores, temas atuais para a campanha presidencial. O que deles pensam os candidatos? Rezem pelo Brasil e votem bem, cuidado também na escolha de deputados, senadores e governadores, são coisas boas que podem ser feitas já.