segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

A autenticidade contra a mistificação

A autenticidade contra a mistificação

Péricles Capanema

A última Veja, 20 de dezembro, nas Páginas Amarelas traz entrevista de Fernando Segóvia, novo diretor-geral da Polícia Federal, dos mais delicados e importantes cargos na estrutura do poder brasileiro, especialmente em tempos de Lava Jato e operações assemelhadas.

Relata o dr. Segóvia que, antes da nomeação, foi chamado ao gabinete do Presidente, encontro longo, duas horas e meia. Conversa vai, conversa vem, Michel Temer discretamente ia sondando.

Pergunta da Veja: “O presidente Michel Temer lhe fez alguma recomendação”?

Resposta do dr. Segóvia: “A única coisa que ele falou foi sobre a necessidade de uma política republicana.”

Santo Deus! Uma política republicana também na Polícia Federal. De passagem, este clichê não morre. Já Gilberto Amado relata que em 1913 havia insinuado a Pinheiro Machado um nome para o Supremo e o caudilho recusara sob a alegação de que não era bom republicano. “Vosmecê não conhece este sujeito, mau republicano, seria mau juiz”. Estamos já entrando em 2018 e a cantilena continua viva. Viva, não, vivíssima. Com um porém. Só em meios oficiais e na imprensa. Notei em artigo anterior ▬ Negócios nada republicanos ▬ sobre o mesmo tema: “Fui ao Google e coloquei nada republicano, nada republicanos, nada republicana, nada republicanas. Milhares de entradas. Contudo, nunca ouvi ninguém em meus círculos empregar a expressão. Sintoma de que é muito utilizada na opinião que publica, pouco ou nunca na opinião pública.” Quando você que agora me lê alguma vez ouviu em seus ambientes um outro dizer, tal pessoa tem conduta republicana? Ou que não segue a ética republicana? Nunca, né? De outro jeito, o povo jamais a utiliza e é simples a razão, não tem pé nem cabeça.

Stalin, assassino, psicopata, tirano monstruoso, considerava altamente elogioso dizer que agia como um comunista. Pior que agia, seguia na trilha de Lênin. Está na substância da conduta comunista a intolerância, o assassinato, a ditadura, a perseguição aos ricos e o empobrecimento cruel dos pobres. Bom é o que o Partido faz; mal, o que fazem seus adversários. Aqui no Brasil tivemos reflexos disso nas administrações petistas.

Com o prontuário da República brasileira (já falei sobre isso no tal artigo), dá calafrios essa repetição mistificadora. Republicanismo, ética republicana, conduta republicana, sei lá mais o quê. Slogans vazios. Aliás, no caso, vazio já é exagerado. São slogans despropositados, de conteúdo sujo, basta ver o histórico nosso. E já desde o início. Logo após o golpe de 15 de novembro, os encarapitados no poder inauguraram a prática do mensalão. Ofereceram a dom Pedro II, que fora escorraçado para a Europa e partia pobre, um bom dinheiro. Resposta do monarca, que recusou a oferta: “Com que autoridade estes senhores dispõem do dinheiro público?”.

Esta utilização abusiva é mais um exemplo de novilíngua (temos hoje milhares deles). Como sabemos, o termo foi cunhado por George Orwell no romance 1984, para designar a atmosfera de hiperautoritarismo que via como ameaça próxima para a humanidade. O significado normal da palavra nada tinha a ver com o que determinava o Partido e acreditavam os cidadãos. Um exemplo, pretobranco. Quando aplicada a um adversário, faz afirmar que negro é branco, apesar da realidade evidente. Quando utilizada para qualificar um membro do Partido, mostra a lealdade ao garantir que preto é branco (caso seja exigência do Partido). Significa ainda estar certo, preto é branco, saber que preto é branco e permanecer convicto que jamais foi o oposto. Com isso, o Partido limitava as possibilidades do raciocínio e eliminava a autonomia. Sempre é grave a manipulação da linguagem, vulnera até o caráter.

Uma das formas de sanear a vida pública brasileira, grande avanço, seria o cultivo do gosto do autêntico, do real, da expressão ‘decidora’ e exata, aliado à fuga do preconceito (o preconceito besta de que, sem exame, a república moderna é forma superior de governo), da discriminação e do unilateralismo. Continuamos aqui e em vários outros pontos, chapinando no brejo do retrocesso e do anacronismo.

Lembro o óbvio ululante. O português está lotado de palavras que dizem o mesmo que se quer significar com o despautério da conduta republicana e expressões de raiz idêntica. Bastaria empregá-las. Algumas delas, administração honesta, decente, proba, íntegra, limpa, obediente às leis.  Seria normal, por exemplo, o Presidente afirmar ao delegado federal que na conduta do importante órgão fazia questão da isenção, do respeito às leis. E também era ponto destacado, fugir como o diabo da Cruz dos nossos hábitos republicanos. Aí seria tranquilizador.

Continua a resposta do dr. Segóvia ao questionário da Veja: “Eu respondi: Lógico, Presidente. A PF tem de seguir a Constituição, as leis do País. Pode estar certo de que, se eu for escolhido, vou fazer da Polícia Federal uma polícia republicana”.

A Veja então atacou: “A PF, então não é republicana?” Acalmaria uma resposta assim: “Ainda é um tanto republicana, mas vou trabalhar duro para fugirmos desse pântano. Terra seca e firme, nosso objetivo”.

O dr. Segóvia caminhou atoleiro adentro: “A Polícia Federal é republicana, mas tem alguns problemas. A gente vê, de vez em quando, desvios de conduta e ações com certo viés político”.

Por essas e outras, continua atual a observação de Ulisses Guimarães. Nos anos 80, quando alguém chiava a respeito do baixo nível do Congresso, o experiente político costumava responder: “Espere o próximo”. Seria uma quasi lex, praticamente uma lei da representação popular no Brasil para valer nos tempos da República: o próximo Congresso é sempre pior ao atual. Temerosos, esperemos o que nos reservam as urnas de outubro de 2018.


O início da sabedoria é o temor de Deus, ensina o Livro dos Provérbios. Na ordem temporal, no início da sabedoria está o temor da manipulação da linguagem. E seu combate. Receio e luta aplainam caminhos. Logo depois o texto bíblico ajunta, a ciência dos santos é a prudência. Ciência dos santos e de quem teme mistificações. Programa útil, ser ambientalista do espírito, reclamar oxigênio na vida pública. Santo Natal e bom Ano Novo para todos.

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