terça-feira, 30 de maio de 2017

Aviltamento acinzentado

Aviltamento acinzentado

Péricles Capanema

O Brasil, chocado, teve notícia da delação premiada do empresário Joesley Batista, um dos donos da JBS, a gigante do agronegócio brasileiro. Deixo de lado o primarismo intelectual, a linguagem chula e o deboche, pelo visto correntes em escolhidas esferas do dinheiro e da política. Trato aqui da naturalidade com que o delator relata telefonema de Lula para ele. O ex-presidente solicitava que João Pedro Stédile o procurasse para pedir dinheiro para o MST; depois com a bufunfa ▬ antes certamente fácil nos governos Lula e Dilma, de momento escassa ▬ iria invadir fazendas, formar militância e promover quebra-quebra.

“Ele [Lula] me ligou esses dias, pediu para mim [sic!] atender os sem-terra. Eu digo ‘ô presidente’(risos) ‘Joesley, eu tô aqui com o [João Pedro] Stédile não sei o que ele precisa falar com você’ ...’Tá bom, presidente, manda ele vir aqui. Eu atendo ele, tá bom’”. Para nosso caso, importa pouco se houve o encontro.

Importa outra coisa. Dos maiores empresários do agronegócio, com inteira naturalidade, aceita dar dinheiro para movimento (MST) cujo fim confessado é o coletivismo no campo, o que implica, a destruição dos fazendeiros. Recordo abaixo a já muito divulgada declaração de Stédile, marxista com ligações com a Teologia da Libertação: “Nós, marxistas, lutamos junto com o papa para parar o diabo”. O diabo, para Stédile, são “o capital financeiro, os bancos, as grandes multinacionais. Os inimigos do povo são esses. Como diria o papa, esse é o diabo”. Outra lembrança, a ameaça de Lula, em fevereiro de 2015 de colocar o exército do MST nas ruas: “Também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas”. De passagem, a JBS é uma grande multinacional.

Judas, na História, foi o traidor prototípico. Chamar alguém de judas, dois milênios após o ato infame, ainda era o pior insulto (agora, tenho minhas dúvidas). Mas ele se sabia traidor, agiu como traidor, teve fim consoante o crime inqualificável. Seu ato, por gerações foi qualificado infame. Era corrente a vida moral ancorada em noções claras de honestidade, coerência, abjeção, honra, decência, degradação, aviltamento. Em muitos ambientes desapareceu sua nitidez, examino um deles.

A atitude de Joesley, acima mencionada, objetivamente atraiçoa os ruralistas. Alguém ouviu alguém falar de felonia? Clima hostil para tal. No geral, os comentários sobre o ato, quando papocados, seguem na linha da distensão do delator: “Tá bom, presidente, manda ele vir aqui. Eu atendo ele”.

Há laivo de chantagem da parte de Lula, oportunismo do lado de Joesley. Um fazendeiro decepcionado com as lideranças rurais me disse: “Dificidimais. Kátia Abreu, fogo, apoiando o PT. O Joesley, pecuarista forte, dando dinheiro para o MST. Tem isso, quando os agitadores do Stédile passarem na frente de uma porteira da JBS, não vão invadir. Entram na próxima, de gente que não socou dinheiro neles”. Método mafioso comum, as FARC utilizaram tal expediente, extorquiam empresários contra promessa de não serem sequestrados. Poderá existir chantagem no caso do MST? Não estou informado, fico longe de negar a possibilidade. Não é tudo, porém. Em parte do público e dos participantes do drama formigam critérios morais distantes da nitidez do preto e do branco. Zonas cinzentas. Bruxuleia ali a noção, certos limites nunca podem ser transpostos. E isso é de importância sem medida para o futuro do Brasil.

Outra. Chegam notícias a todo instante da tortura dos venezuelanos, manietados e esfomeados. Conhecemos alguns dos responsáveis: Lula, PT, demais partidos de esquerda, Odebrecht, João Santana, Mônica Moura. As campanhas eleitorais milionárias, responsáveis pelo assalto ao poder dos torcionários Hugo Chávez e Nicolás Maduro, foram regadas por dinheiro desviado do contribuinte brasileiro mediante o agora conhecido mecanismo ▬ revelado no bojo da Operação Lava-Jato ▬ dos carteis, superfaturamento, porcentagem de obras para bolso e campanha de dirigentes favorecedores do comunismo. Já são quase vinte anos de sofrimento na Venezuela, cuja responsabilidade em parte pesa nas costas do governo e de empresários brasileiros. Onde a inconformidade com o apoio de grandes capitalistas e empresas brasileiras ao coletivismo, sempre causador de miséria? É muito mais grave que o mero roubo de dinheiro público.

“Todas as coisas têm o seu tempo [...] há tempo de amor e tempo de ódio, há tempo de guerra, e tempo de paz”, ensina o Eclesiastes. Agora é tempo da inconformidade nutrindo reflexões que iluminem as raízes da crise. Na busca da clareza total encontraremos a saída. Sem ela, passo a passo aumentará a desorientação dos espíritos; daí, facilmente escorregarão para o cansaço, a indiferença e a atonia. A seguir, rápido, teremos a rota aberta para aventuras e tragédias.


Não será a primeira vez. Ocorre-me uma delas, a queda repentina da monarquia com o público em céu de brigadeiro. Assim a descreveu Aristides Lobo, ministro do primeiro governo da República: “O povo assistiu àquilo bestificado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”. O atual aviltamento acinzentado também bestifica o povo que dele não se defender, para desgraça nossa.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Servilismo ideológico, combustível do sofrimento popular


Péricles Capanema

Em 1927, Julien Benda publicou na França “Trahison des clercs”, livro controvertido, que fez história. Apontava generalizada a traição dos letrados, cegos à realidade, subservientes diante do poder totalitário. Em linguagem mais atual seriam intelectuais, clérigos, artistas, grandes milionários, cuja ação favorece a servidão comunista. George Orwell os qualificava de esquerda moral: “Os intelectuais são levados para o totalitarismo muito mais que as pessoas comuns”. Raymond Aron acoimou tal fenômeno de “passagem da consciência livre à servidão voluntária”. A trahison des clercs virou moeda corrente na vida pública francesa. A maior rumorosa delas foi a degradação de Jean-Paul Sartre diante das ditaduras comunistas da Rússia e da China. Nelson Rodrigues tachou-o de “canalha translúcido”.

Lembrei-me da expressão ao, confrangido, passar os olhos no volumoso noticiário sobre Antônio Cândido de Mello e Souza (1918-2017), crítico literário, presente na vida pública desde muitas décadas. O comentário do crítico Sérgio Augusto sobre o escritor falecido dá o tom da cobertura: “Era, sem hipérbole, o maior brasileiro vivo. Sua morte, sem clichê, marca o fim de uma era”.

Vejamos seu pensamento. Transcrevo partes de entrevista que concedeu em agosto de 2011: “O socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo”. A agressão à realidade não poderia ser maior. Emendou, consertando: “Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem de caminhar para a igualdade. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo”. No mínimo está pouco matizada e delirantemente imprecisa a junção indiferenciada de todas as mencionadas correntes na tentativa de esconder o amazônico fracasso socialista. Volta-se então para o capitalismo: “O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva como Marx definiu”. Na vida real, os pobres do mundo tentam entrar de todas as maneiras na nação capitalista, os Estados Unidos. E sempre fugiram como da peste de todas as nações comunistas. Que construíram muros, cercas e treinaram polícias para mantê-los encarcerados no próprio país.

O entrevistado tinha um problema, o socialismo como existiu na prática, dirigindo tudo, invariavelmente oprimiu e empobreceu o povo. Escapou com uma pirueta: “O socialismo só não deu certo na Rússia. Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder”. Outra vez, oculta o real. A Rússia não foi o único desastre. O socialismo fracassou na proporção de sua realização em todos os países em que foi aplicado.

Antônio Cândido teve o descaramento de propor um modelo “formidável”: “O socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o Camboja”. A tirania dos irmãos Castro é o modelo a ser exaltado e copiado.

Coerente na hora de votar: “Quando eu era militante do PT ▬ deixei de ser em 2002, quando o Lula foi eleito ▬ era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda”. A Articulação é uma espécie da Centrão dentro do PT, tem programa mais gradualista. O crítico literário, na hora do voto, evitava sufragar sua corrente, procurava fortalecer a extrema esquerda. Era ainda coerente com sua matriz ideológica: “Tenho muita influência marxista ▬ não me considero marxista, mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas”.

Antônio Cândido aqui é sobretudo um exemplo. Exemplo de dezenas, talvez centenas de milhares de intelectuais, clérigos e milionários brasileiros (no mundo todo, à vera) que, cegos à realidade, trotam fanatizados atrás de delírios sociais igualitários. São corresponsáveis das piores tragédias sociais do século 20 e 21. Dom Paulo Evaristo Arns, que convidou o ateu e em boa parte marxista Antônio Cândido para a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, foi desses clérigos. Compartilhou o entusiasmo do escritor pela tirania castrista. Em carta ao ditador comunista, derreteu-se o prelado brasileiro: “Aproveito a viagem do frei Betto para lhe enviar um abraço e saudar o povo cubano por ocasião deste 30º aniversário da Revolução. Hoje em dia Cuba pode sentir-se orgulhosa de ser no nosso continente um exemplo de justiça social. A fé cristã descobre, nas conquistas de Revolução, os sinais do Reino de Deus”. E vai por aí afora, num deprimente exemplo de sabujismo a um regime torcionário.

Diante de nossa porta temos o caso da Venezuela, outra aplicação do socialismo. Informa o jornalista venezuelano Moisés Naim no Estadão: “Não é Maduro que importa. Tirá-lo do poder não basta. Ele é simplesmente o bobo útil dos que realmente mandam na Venezuela: os cubanos, os narcotraficantes e a viúvas do chavismo. E, obviamente, os militares ▬, ainda que, tristemente, as Forças Armadas tenham sido subjugadas e estejam a serviço dos verdadeiros donos do país. O componente mais importante dessa oligarquia é o governo cubano. Para Cuba não há prioridade maior que continuar controlando e saqueando a Venezuela. E Havana sabe como fazer isso. Os cubanos aperfeiçoaram as técnicas do Estado policial. Acima de tudo, os cubanos sabem como se proteger de um golpe militar. Não é por acaso que a Venezuela tem hoje mais generais que a OTAN ou os Estados Unidos. Ou que muitos ex-generais estejam exilados. Narcotraficantes. Eles constituem o outro grande poder. Os herdeiros políticos de Chávez são o terceiro grande componente do poder real na Venezuela”. Os cubanos comunistas, lembrando Antônio Cândido, constroem lá agora, uma vez mais, uma sociedade “formidável”.


Termino. Sofremos apocalíptica mistificação, promovida pela opinião que se publica. Opinião pública é outra coisa. Os setores que perenizam a “trahison des clercs” alardeiam humanismo, tolerância, amor aos pobres. É a face da fantasia. Na outra face, a da realidade, tornam possível a implantação do comunismo repressor, implacável, disseminador da miséria. Desmitificá-los de há muito se tornou obra prioritária de salvação nacional e caridade social.

sábado, 13 de maio de 2017

Choque da realidade abala utopismo democrático

Choque da realidade abala utopismo democrático

Péricles Capanema

Imagine um júri popular. O Conselho de Sentença, vamos supor nove, não sete, como no Brasil, dividido em três partes. Um terço presta atenção nos argumentos da acusação e da defesa. Outro terço, enfastiado, faz nenhum esforço para formar juízo. Na hora decidirá. O terceiro, também sem prestar atenção, vai condenar ou absolver segundo gostou ou não gostou do jeitão do acusado; na cabeça trotam preconceitos, xodós e birras. O réu é condenado à morte.

Corta. Ainda sobretudo acadêmica, mas já com amplos reflexos nos meios de divulgação, está em curso nos Estados Unidos enorme discussão sobre os fundamentos da democracia moderna. É instrumento hábil? Em que proporção? Inábil na presente configuração? Por quê? Como diminuir injustiças e desastres?

Já um pouco antiga, a controvérsia foi engrossada pelo bem argumentado livro Against Democracy de Jason Brennan, filósofo político da Universidade de Georgetown. O estudioso parte de constatação manifestada em pesquisas provenientes dos mais variados quadrantes. A maior parte dos votantes nos Estados Unidos não se interessa por eleições e políticos. A mais, na grossa maioria, os eleitores são ignorantes dos temas em discussão, além de ter comportamento irracional. Aqui estão suas palavras: “Cientistas políticos, psicólogos e economistas estudaram a conduta do eleitor por mais de sessenta anos. Fizeram milhares de estudos, compilaram enorme acervo de dados. Linha geral, suas conclusões são uniformes e deprimentes. Via de regra os eleitores são ignorantes, mal informados e preconceituosos”.

Aumentar informação ajuda? Em termos. As pessoas, é o comum, procuram “digeri-la” dentro dos grupos de que são afins. E continuam com as mesmas convicções. Finalmente, constata o eleitor, seu voto pesa quase nada. Outro modo, inexistem incentivos para se informar bem. Resultado, procura se interessar por outras atividades, que não a vida pública. A situação no Brasil, ninguém duvida, bem pior.

Brennan recorda, os eleitores não estão escolhendo o sanduíche que mais lhes apeteceria. O voto decide temas como a guerra e a paz, rumos de prosperidade ou de pobreza, crescimento ou estagnação. Ainda, sua decisão, se majoritária, recai sobre os eleitores contrários, ausentes, crianças, estrangeiros. E aqui o referido autor ilustra com o exemplo do conselho de sentença, decidindo a vida e a morte de uma pessoa. Declara-o culpado, mas não pela ponderação dos argumentos. Acrescenta ele, o mínimo que um réu exige é jurados competentes e de boa fé. Qualquer advogado de defesa, podendo provar que o conselho de sentença assim agiu, pediria anulação (pelo menos por lá).

Jason Brennan divide o eleitorado norte-americano em três categorias: hobbits, hooligans e vulcans. Os hobbits (anãozinho mítico) têm pouco ou nenhum interesse em política, baixíssimo nível de conhecimento político. Os hooligans (torcedores fanatizados) têm um pouco mais de conhecimento, nenhuma sofisticação, votam como tomam partido os mais ardidos torcedores de times de futebol. A soma dos dois constitui a grossa maioria do eleitorado. Os vulcans (vulcões) são os informados, que votam racionalmente, minoria ínfima. O conjunto é fortemente influenciado por políticos inescrupulosos e grupos de interesse. Aqui o quadro se agrava com a presença dos spin doctors nas campanhas eleitorais modernas. Especialistas em enganar pela distorção e exageros, manipulam o noticiário para moldar a percepção pública. Conclusão do especialista: estamos diante de repetidas injustiças contra a população, decorrentes de concepção erradas e estruturas viciadas. E são insuficientes os recursos de defesa das democracias contra desatinos decorrentes de sua concepção e estrutura, como chamados os freios e contrapesos, entre os quais revisões judiciais, barreiras constitucionais, legislaturas bicamerais, burocracia autônoma.

Para ele, qual o caminho? A epistocracia ou epistemocracia. Em resumo, normas de seleção para poder participar da vida pública. Formas semelhantes já forma propostas ao longo da História, começando com a república dos sábios de Platão. Nos modernos se destaca, entre muitos, John Stuart Mill. O voto qualificado, outra tentativa, existiu em vários países. Reflexo discreto de tal concepção, na Inglaterra o aluno de Oxford podia votar duas vezes até décadas atrás.

Jason Brennan propõe como medida preliminar um teste mínimo de conhecimento político. Quem passasse, votaria. Reprovado, poderia tentar outras vezes. Argumenta ele, na prática já se aplica tal critério nos Estados Unidos. Antes dos 18 anos, ninguém vota lá. O que é isso? Parece simples bom senso, à vera decorre da noção de que a imaturidade e a ignorância impedem o exercício do voto; mais ainda, a participação nos destinos nacionais. Lembra, milhões de norte-americanos adultos são mais ignorantes e imaturos que milhões de jovens menores de 18 anos. Outra, o imigrante legal só pode votar se passar por um teste de civismo. A maioria dos norte-americanos nele seria reprovada. Qual a razão para não aplicar a mesma lógica a toda a população? Na vida privada, sempre agimos assim. Se aparece um problema hidráulico na casa, chamamos o encanador. Doentes dos olhos, corremos ao oculista. Jason quer o mesmo critério na vida pública.


O autor defende a democracia norte-americana, não em sua atual configuração. Contesta dela ainda certos princípios, afirmando que a História revelou podridão em suas raízes. Desmitifica-a, para ele mero instrumento, cheio de lacunas (que pretende combater), destinado a produzir políticas eficientes. Acha absurdo o culto que lhe é prestado, uma espécie de “religião oficial do Ocidente”. Compara-a a um martelo. Ele deve pregar bem os pregos. Se encontrarmos um martelo melhor, trocamos. Assim como nos Estados Unidos, deveríamos nós aqui também abrir um debate, deslocando-a do terreno do mito, enraizado no pensamento mágico e não na realidade percebida, cujo efeito é lançar a cabeça no mundo imaginário e os pés num beco sem saída. Seria uma boa maneira de tirar peso dos ombros do povo.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Experimentações totalitárias em crianças

Experimentações totalitárias em crianças

Péricles Capanema

Tal pai, tal filho; filho de peixe, peixinho. Ainda, o filhote do tigre é listrado. De outro modo, quer conhecer alguma coisa? Estude as raízes, sempre um começo bom. Farei. O criador da ideologia do gênero é John Money, psicólogo e sexólogo neozelandês, nascido em 1921, falecido em 2006. Deu nova acepção à palavra inglesa gender (gênero). Em 1972, precisou sua teoria no livro Man & Woman, Boy & Girl. O livro tem como ponto de partida o episódio David Reimer, paciente dele. Era a prova de que ia no rumo certo sua teoria do gênero construído, conceito relacionado com o de atribuição sexual e neutralidade de gênero.

Vamos aos fatos. David Reimer, no batismo Bruce Reimer, nasceu em Winnipeg, Manitoba, 1965, criança normal do sexo masculino. Teve um irmão gêmeo, Brian. Com oito meses foi neles realizada operação de fimose. A circuncisão, usando método novo, lesou o pênis de Bruce. Os pais decidiram não realizar o procedimento em Brian. Angustiados, procuraram o dr. John Money no Johns Hopkins Hospital. Tinham visto uma entrevista do psicólogo, na qual defendia a teoria da neutralidade de gênero. O clínico propôs que Bruce Reimer (que foi renomeada Brenda Reimer e mais tarde virou David Reimer) como menina tivesse maturação sexual por meio da aprendizagem social. Os pais aceitaram. Aos 22 meses lhe foram retirados os testículos, vestiram na criança roupas de menina e o dr. Money começou a divulgar seu grande caso clínico, do qual ele trombeteou êxitos em artigos (falsamente, veremos). Em Brenda Reimer foi injetado estrógeno para que lhe crescessem mamas. O dr. John Money lhe deu assistência psicológica por dez anos. Escreveu: “O comportamento da criança é claramente o de uma menininha ativa, muito diferente dos modos masculinos de seu irmão gêmeo”.

Vou resumir o embuste escabroso. Brenda, de fato, não se identificou como menina. Teve infância traumática. Aos 13 anos, disse aos pais que se suicidaria se o levassem mais uma vez ao dr. John Money. Aos 14 anos, decidiu assumir identidade masculina e se autodenominou David. Em 1980, os pais lhe disseram a verdade (o pobre menino tinha sido cobaia de um grupo de estudiosos obcecados e mitomaníacos). David passou a tomar o hormônio masculino testosterona, fez ablação das mamas. Mais tarde, em 1997, contou sua situação ao psicólogo Milton Diamond que publicou os relatos, acusando John Money de falsificar pesquisas. A história de mentiras, fraudes e desvarios ideológicos foi publicada por John Colapinto em livro best-seller As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised As A Girl. Curto, o irmão Brian morreu em 2002 de overdose de antidepressivos. Em 5 de maio de 2004 David se suicidou com um tiro na cabeça. Tinha 38 anos.

Encurtei, pus de lado, entre as várias experimentações delirantes, os ensaios de atos sexuais entre os irmãos promovidos pelo psicólogo, um deles intitulado “jogos sexuais infantis, importantes para uma identidade de gênero adulta saudável”. A história hoje está em numerosos artigos e livros. A realidade aqui foi além dos mais macabros filmes de terror. Assim nasceu a ideologia do gênero; é compreensível que seus partidários prefiram calar sobre tais origens.

Hoje, no mundo inteiro, correntes libertárias e governos de esquerda estão tentando impô-la, por vezes apenas como doutrina pedagógica. É mais, embute uma visão do homem. Na França, o governo socialista de François Hollande se viu compelido a recuos depois de forte reação popular. Entre as vozes que denunciaram o perigo esteve em primeiro plano Bérénice Levet, escritora conhecida. Em 31 de janeiro de 2014 ela afirmou ao Figaro: “Sem dúvida, a teoria do gênero enquanto tal não é ensinada na escola primária, mas muitos postulados seus ali são difundidos”. Ou seja, serve de fundamento pedagógico. Continua a conhecida autora: “Os teóricos da ideologia do gênero afirmam: a partir da convicção que tudo pode ser construído, tudo pode ser descontruído”. Observou ela, o governo, com as crianças, lançando a escola numa política de engenharia social, sem nenhum escrúpulo está brincando de aprendiz de feiticeiro. Ponderou com acerto: “Na escola primária as crianças têm necessidade de identificação, e não de desindentificação. Estamos abandonando nossas crianças a estereótipos kitsch [reles, contrafações ordinárias, se quisermos] de desenhos animados”. E advertiu: “Se existe alguma coisa a guardar dos totalitarismos nazistas e estalinistas é que o homem não é um simples material que se pode moldar. Com a ideologia de gênero, a aposta é antropológica”. Ou seja, está em jogo a própria noção de pessoa humana.

No artigo anterior, tratei do desprezo e da desobediência de tradicional colégio religioso a advertências de Bento XVI e do Papa Francisco a respeito. Continuo na mesma direção. Em abril de 1998, a Conferência Episcopal Peruana, por meio da Comissão Episcopal do Apostolado Leigo e da Comissão da Mulher emitiu advertência gravíssima a respeito: “Tem-se ouvido durante estes últimos anos a palavra ‘gênero’ e muitos imaginam que é apenas uma outra maneira de se referir à divisão da humanidade em dois sexos. Porém, por detrás desta palavra se esconde toda uma ideologia que pretende modificar o pensamento dos seres humanos acerca dessa estrutura bipolar. Os proponentes de tal ideologia querem afirmar que as diferenças entre o homem e a mulher, fora as óbvias diferenças anatômicas, não correspondem a uma natureza fixa que torne alguns seres humanos homens e, a outros, mulheres. Além disso, pensam, as diferenças de pensar, agir e valorizar a si mesmos são produto da cultura de um país e de uma época determinadas, que atribui a cada grupo de pessoas uma série de características que se explicam pelas conveniências das estruturas sociais de certa sociedade. Querem se rebelar contra isto e deixar à liberdade de cada um o tipo de “gênero” a que deseja pertencer, todos igualmente válidos. Isto faz com que homens e mulheres heterossexuais, os homossexuais, as lésbicas e os bissexuais sejam apenas modos de comportamento sexual produto da escolha de cada pessoa, liberdade que todos os demais devem respeitar. Não é necessária muita reflexão para se dar conta de quão revolucionária é esta posição e das consequências que implicam a negação de que há uma natureza dada a cada um dos seres humanos por seu capital genético. Dilui-se a diferença entre os sexos como algo convencionalmente atribuído pela sociedade e cada um pode ‘inventar’ a si mesmo. Toda a moral fica à livre decisão do indivíduo e desaparece a diferença entre o permitido e o proibido nesta matéria. As consequências religiosas são também óbvias. É conveniente que o público em geral perceba claramente o que tudo isto significa, pois os proponentes da mencionada ideologia usam sistematicamente linguagem equívoca para poder se infiltrar mais facilmente no ambiente, enquanto habituam as pessoas a pensar como eles”

Estamos diante de investida mundial levada a cabo por pessoas e grupos de mentalidade totalitária, pretendem tiranicamente moldar o homem e a sociedade a suas alucinações igualitárias. Anos atrás, 2006, publiquei livro “Horizontes de Minas” em que, numa parte, procurei descrever o perigo social que representam tais grupos e pessoas: “Pessoas de mentalidade totalitária (não são poucas, basta observar ao redor nosso) consideram o homem e a sociedade como massa amorfa, argila, plasticina, barro, sei lá, para ser modelada segundo as doutrinas que trotam na cabeça delas. Pretensiosas, impacientes, em geral arrogantes, observam mal e superficialmente. Irritam-se facilmente com a realidade. Têm obsessões. É, de fato, uma forma de mitomania. E tantas vezes essa mentalidade é a dos governantes ou do partido no poder. Tragédia certa. Dois exemplos dos Tempos Modernos: a Revolução Francesa e a Revolução Russa. Segundo seus líderes, o homem e a sociedade precisavam entrar em moldes novos. Mas os pobres destinatários da experiência social não a queriam e nem cabiam nas fôrmas. Não fazia mal. Para tais teóricos da revolução existia um remédio: terror, carnificina, ditadura. Aí esse recurso fica válido, não tem problema, pois o remédio delirante tinha por objetivo inaugurar a era da felicidade humana e da sociedade perfeita. Mas, de fato, nem a tarraxa nem a sangueira adiantam, pois a natureza humana continua a mesma. Resultado: escombros sem conta. Sem conta, não: a conta a pagar é altíssima. Isso não acontece apenas nos governos dos Estados. Situações semelhantes sucedem em empresas, escolas, famílias. Onde existem pessoas de mentalidade totalitária, e elas existem em todos os lugares”.


A ideologia do gênero tem versões girondinas (supostamente moderadas). Em suas correntes jacobinas, que levam seus pressupostos doutrinários a suas últimas consequências lógicas, postas certas circunstâncias, tem potencial diabólico (não vou fugir do termo) para repetir o terror da Revolução Francesa, da Revolução Russa e do nazismo. Reajamos logo; se demorarmos, pode ficar tarde.